domingo, 8 de março de 2015

SOBRE OS FRACASSOS NA PROVA DE REDAÇÃO DO ENEM DE 2014

       Ninguém há de negar que o Brasil precisa de um sério reforço no ensino de leitura e produção de texto.  À luz do que aconteceu na prova de Redação do Enem do ano passado, não basta encarar o fato de que 500.000 redações levaram zero como sendo só mais um derivado da inépcia de estudantes, como se eles fossem os principais responsáveis pelos resultados ou como se cada um dos que receberam zero fosse indubitavelmente um péssimo redator.  É preciso entender que, quando se trata de notas da prova discursiva do exame, não se deve questionar apenas a falta de habilidade de candidatos: é preciso analisar também os critérios de correção estabelecidos pelo INEP, nem sempre seguidos à risca pelos alunos e pelos professores que atribuem notas às redações, e o método com que se treinam os estudantes, que não recebem sempre as melhores orientações nem aulas cujo conteúdo lhes proporcione conhecimentos básicos e genéricos e instigue a criatividade.
       Mesmo que um aluno escreva muito bem, pode ele receber zero desrespeitando os direitos humanos.  Para isso, basta, por exemplo, que ele proponha a implantação da pena de morte (intervenção a que o tema da última prova muito dificilmente poderia ser ligado).  Há outros motivos que podem fazer com que bons redatores levem zero, como um bom texto de menos de oito linhas; entretanto, de nenhum deles cogitam os jornalistas e os pais iletrados que se queixam da baixa qualidade do ensino das escolas públicas (comprovada por exames do IDEB para favorecer as escolas particulares), mas que não se detêm para ler um livro ou para escrever um bom texto em casa, lugar em que devem ser dados bons exemplos.  (Se eles se detivessem para tais atividades, obviamente não seriam iletrados, pelo menos não tanto quanto agora.) 
       Outro fator de fracasso a ser considerado são as orientações e o próprio conteúdo das aulas de Redação.  Parece que muitos professores passam certas teorias sobre tipologias e gêneros textuais (muito importantes) seguidas de recomendações que contemplam especificidades da banca examinadora do Enem.  Nada disso, porém, alcança bons resultados, porque os vários alunos que não leem livros dificilmente produzirão bons textos, e os que leem romances e compêndios não são obrigatoriamente bons escritores: precisam de treino, de prática de redação.  Contudo, depois de serem "fuzilados" com prescrições, veem-se participando de debates, como se devessem se preparar para uma prova de oratória, embora o objetivo seja tirar uma boa nota na prova de Redação, em que, como o nome já diz, o discente deve redigir em vez de falar.  Será que se perdeu a noção de que a fala e a escrita são formas completamente diferentes de manifestação do pensamento?
       Algumas orientações dos professores que querem o sucesso dos alunos no Enem não têm razão de ser.  Um exemplo é aquela segundo a qual não se deve criticar o governo.  Segundo os mestres que isso dizem, críticas a ele motivam o avaliador a dar nota zero, apesar de o Guia do Estudante feito pelo INEP não dizer isso.  E quem o afirma pode fazer parte da banca que avalia as redações do Enem...  Por que se usa esse critério?  Levantam-se as seguintes hipóteses: Há hierárquicas imposições verbais aos avaliadores que os façam analisar os textos de forma tão inaceitável?  Se sim, é por causa delas que certas composições recebem notas mais ou menos altas?  Não bastasse a norma descabida de não aceitar críticas ao governo, não há nada que faça com que o aluno tenha o desejo de escrever ou de sustentar um ponto de vista (que pode muito bem não ser o seu, já que todo indivíduo pode escrever um texto do ponto de vista de outra pessoa, com ou sem marcas da pessoalidade; por isso um aluno que seja a favor da pena de morte, por exemplo, pode condená-la num escrito).  Em verdade, não há um conteúdo curricular voltado para a produção de bons textos de forma geral: há apenas um adestramento sem incentivo à criatividade.  O básico não é ensinado em sala de aula, onde o professor não lê um texto seu, onde não divulga um artigo de opinião própria (o que quer dizer que não dá o exemplo provando que é capaz de argumentar num texto escrito).  Sem a base formada com a leitura e a criatividade, necessárias quando o objetivo é escrever bem de forma geral para depois entender as exigências de um concurso, de que adiantam a teoria e as prescrições voltadas para os critérios específicos desta ou daquela banca?
       É praticamente inevitável que os leigos, que são a maioria da massa que assiste aos telejornais, sempre critiquem a incompetência de estudantes (entre os quais podem estar os próprios filhos dos críticos improvisados e aparentemente desprovidos da capacidade de incluí-los entre os fracassados ou entre os que quase levaram zero).  Diante do exposto, os pais devem entender que bons escritores podem, deliberadamente ou não, tirar zero, mesmo quando fornecem um texto bem construído.  E a crítica à inépcia e ao péssimo resultado de alunos deve dar lugar à crítica à sua origem: a falta de bons exemplos e de boas orientações em casa e em sala de aula, onde também há a carência de bons métodos.  Resta saber se essas mazelas são de responsabilidade apenas dos professores ou de um sistema que os massacra e impossibilita o aprimoramento deles, hipótese esta que é a mais provável.  Mas é certo e inquestionável isto: As mudanças necessárias à prevenção de outros 500.000 textos com zero num total de 6 milhões devem ser verticais, de cima para baixo.  Os alunos, a parte de baixo, ainda são as vítimas, e não os culpados.

(Duque de Caxias, em 8/2/2015, no Facebook.)

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