A MÚSICA QUE VEM LÁ DE FORA (OU:
PROBLEMAS EM CANTAR EM JAPONÊS)
Alguns (ou muitos) de nós têm o hábito de cantarolar as canções
favoritas. Não importa que os cantores improvisados tenham péssima voz até mesmo para algo que não exige afinação: dominados pela melodia, encaixam nela a letra. É isso o que acontece comigo — e talvez as
pessoas estranhem. Não que a minha voz
seja horrivelmente esquisita (bonita sei que não é). Acontece que eu canto em japonês.
O Brasil, uma mistura de culturas e raças, é, todos sabem, o país com o
maior número de imigrantes japoneses. Ao
cantar músicas da terra do sol nascente, não deveria um brasileiro correr o
risco de receber críticas segundo as quais não se devem cantar músicas cuja
letra não se entende. Pelo visto, isso
só é permitido quando se trata de músicas norte-americanas. Afinal, gostamos de tudo que vem da terra do
tio Sam; adoramos macaquear os super-homens dos Estados Unidos. (Contudo, saber, como não saber, o significado
de uma letra estrangeira é um direito, e não uma obrigação.)
A meu ver, é belíssima a língua japonesa; talvez seja uma das mais belas línguas (não posso afirmar que é o mais belo idioma, pois não conheço todas as línguas do
mundo). Mas, convenhamos: cantar em
japonês pode ser engraçado. Para os
brasileiros, certas palavras do idioma nipônico formam legítimas cacofonias
(uniões de palavras que formam outras de sentido desagradável ou
ridículo). Vejamos.
Estou eu pedalando numa rua ladeada por casas (não há ciclovias no
município em que moro). Começo a cantar
alto, pois, aparentemente, a rua está deserta, e não me ocorre que os moradores
possam se incomodar:
— Omoide wa itsumo kirei dakedo
[Bonitas são as lembranças (é o que
dizem certas traduções)].
Aparece um pedestre, que escuta o verso seguinte:
— Sore dake ja ona KA GA SÚKU wa
[Mas elas por si sós não satisfazem].
Se continua a ouvir, escuta, na segunda metade da letra (a canção é Sobakasu (Sardas, segundo as traduções que li)):
— (...) Sore ga atashi no seikaKU
DAKARA [É esta a minha personalidade].
Se, num exercício de abstração, “esquecermos” o nosso idioma por alguns
momentos, poderemos achar bonitas as cacofonias, que, nesse caso, deixarão de
ser o que são.
Quem quer trocadilhos obscenos não tem de escutar canções japonesas. Em verdade, não precisa nem de unir duas
palavras para formar uma terceira hilária ou indesejável. Basta conjugar o verbo computar: comPUTO, comPUTAS, comPUTA, computamos, computais,
computam. Trata-se, aqui, de um verbo
defectivo (defeituoso), que não deve ser flexionado nas três pessoas do
singular no presente do indicativo.
(Segundo o professor Sérgio Nogueira, o verbo adequar também é defectivo; mas não creio que suas formas finitas
do presente do indicativo sejam tão cacofônicas quanto as três do verbo computar).
O problema da cacofonia é maior quando ela se dá com a união de
palavras. Evitar um verbo defectivo não
é muito difícil; todavia, não acho que se possa dizer o mesmo quando temos de
evitar o surgimento de um termo com o qual se faça trocadilho. Se alguém diz: "Vou soCAR ALHO", ou:
“Vou-ME JÁ, ou ainda: “Não gosto da polítiCA GOvernamental”, não tem intenção
de fazer grosseria... Quando alguém lê
em voz alta um texto cheio de cacofonias, esse alguém pode passar por um constrangimento. O ideal é que se evitem vocábulos cacofônicos
e eventuais junções cacofônicas (lembremo-nos de Machado de Assis: “Há coisas
que se não dizem.”), a menos que tenhamos a intenção de fazer humor.
Isso tudo deixa bem claro que não é justo discriminar a língua japonesa:
cacofonias não são exclusividades suas.
Resta, naturalmente, a questão de lidar com o que é diferente.
Ouvir canções japonesas não rende mais surpresa alheia do que cantá-las,
e embora as duas ações não sejam necessariamente crimes de lesa-pátria, há quem
ache um despropósito escutar alguém cantar em japonês. Já li, no You
Tube, comentários enfezados sobre uma apresentação da cantora Melissa
Kuniyoshi, que, no programa de Raul Gil, interpretou composições
japonesas. Ainda que não se possa negar
o talento da menina, cuja voz é muito bonita, houve quem se queixasse do
repertório, como quem diz: “Por que uma menina está cantando em japonês no
Brasil? Não é uma atitude nacional nem nacionalista!” Ora, ouvir o que é estrangeiro não torna o
Brasil menos brasileiro, e ter aversão sistemática a tudo quanto vem de fora
não ajuda a combater a desnacionalização do nosso país. Nem tanto ao mar. É preciso ter equilíbrio, coisa que o nosso
povo não alcança. Quem não gostou do fato
de Melissa Kuniyoshi escolher músicas do Japão dificilmente teria se incomodado
se ela tivesse cantado uma música da Lady Gaga.
— Mas a maioria do público (dirão alguns observadores afobados) não tem
ascendência japonesa.
— Que raciocínio! (responderei). Então
é preciso ter ascendência chinesa para gostar de macarrão, norte-americana para
gostar de hambúrguer e italiana para saborear uma pizza?
A despeito das cacofonias, o japonês, como outros idiomas, é uma língua
eufônica (agradável aos ouvidos): suas colisões, suas aliterações, seus
ditongos, seus hiatos e suas ordens vocálica e silábica causam um efeito
estético que pode perfeitamente ser apreciado.
Mas, suponhamos que cantar em japonês fosse crime aos olhos da Lei. Não haveria problemas: eu poderia substituir
as letras escritas em japonês por outras escritas em português, e essa ideia já
ponho em prática; para isso, faço adaptações.
Algumas traduções (amadoras) de Sobakasu,
música de abertura de Samurai X,
foram a base para Sardas e Espinhos. Ninguém se interessa pela letra quando a
escuta; ninguém me pergunta: “Que música é essa?”. Que se pode esperar? Muitos brasileiros só querem ouvir Justin
Bieber. E são esses brasileiros que mais
precisam de adaptações. Como 95% deles
não têm nem um pouco de intimidade com o inglês, já se imaginam as distorções
nas letras e os erros de articulação de vocábulos durante as cantorias sob o
chuveiro. É mais cômodo cantar em
português. Entretanto, jamais fariam
adaptações, mesmo se tivessem acesso a boas traduções: seriam contra elas: a
pobreza de imaginação e o complexo de inferioridade nunca permitiriam que
fugissem da subserviência aos estadunidenses.
(Azar o deles.)
(É perfeitamente viável adaptar canções estrangeiras, ainda que isso
seja mais difícil do que parodiá-las com fins satíricos. Rodrigo Rossi, responsável por Laços de Flor, cantados por Melissa
Matos, mostrou-se competentíssimo adaptador.
Foi fiel à ideia e ao contexto de Hana
no Kusari, mas não foi subserviente à letra japonesa (nem poderia
ser). Soube descrever a tristeza e a
saudade de uma pessoa cujos laços de amizade estão desgastados, enquanto ela
está distante da pessoa amiga sem deixar de sentir saudades do passado; daí se
deduz que haja algum motivo para a distância, talvez uma mágoa ou uma
circunstância que gere um fatalismo, uma conformação, mas não uma conformação
absoluta: a “personagem” da letra acredita que “mesmo um deus não vai
separá-los”, até porque, em sonhos, tenta “modificar um destino tão sombrio”. É esse estado de coisas (e de espírito) que
se descreve tanto na letra japonesa como na adaptação brasileira (pelo menos é
isso o que penso). Naturalmente, ideias
secundárias e certas figuras de linguagem foram substituídas por outras, de
modo que fosse desenvolvido o tema da letra.
É um misto de transcriação e criação pura. Se levarmos em conta a tese da tradutora Lia
Wyler, autora de Línguas, poetas e
bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil, a letra de Rossi também será original, pois a composição dele não existiria se não a tivesse feito, isto é:
se não a tivesse criado. Graças a ele,
aos tradutores e à Melissa Matos, os fãs d’Os
Cavaleiros do Zodíaco ganharam um verdadeiro presente, e o patrimônio
cultural do país ganhou um novo componente.)
São nostálgicas as músicas de abertura e de encerramento de desenhos
japoneses; e foram o prelúdio para a entrada marginal da música japonesa e até
da música de outros países orientais.
Digo marginal porque, com exceção de PSY e Puffy AmiYumi, não
houve divulgação nem concertos, a menos que levemos em conta os eventos de
desenhos japoneses feitos para grupos numerosos, porém seletos, de fãs
ocidentais.
Quem quer fazer humor com músicas japonesas não precisa esperar que alguém
passe de bicicleta. Basta achar um fã de
Dragon Ball Z que esteja cantando a
primeira canção de abertura. A esse fã
deve ser dito o seguinte:
— Chá, lá?! Então vamos tomar
chá!
O assunto, contudo, é sério. São necessárias uma educação musical e uma educação linguística. O Brasil não sabe apreciar o que é seu nem o
que é estrangeiro. Com um povo que não
estuda línguas e que não recebe aulas de música nas escolas, fica difícil (ou praticamente
impossível) esperar que se aprecie música oriental. Mas há esperança: Melissa Kuniyoshi foi
aplaudida mais de uma vez na televisão.
Até que isso mude, escutarei manifestações sonoras urbanas com as quais
o zé-povinho revela falta de pudor e ignorância. Apesar desse triste quadro, posso me divertir
cantando:
— Minha mãe me falou que eu
preciso casar/ Pois eu já fiquei mocinha...
Isso, sim, é de fazer rir.
(Duque de Caxias, de 29 de dezembro de 2012 a 19 de junho de 2013.)