terça-feira, 4 de outubro de 2016

DISCURSO DE FORMATURA DA PRIMEIRA TURMA DO CURSO EAD DE LETRAS DA UFF

           Prezados colegas, parentes orgulhosos, caros professores, caras professoras, ilustríssimo Presidente do Consórcio Cederj, ilustríssima Diretora Acadêmica do Cederj, Sra. Diretora do Instituto de Letras da UFF, Sra.  Coordenadora do curso, Sra. Vice-Coordenadora do curso e Excelentíssimo Senhor Reitor:

Não é tarefa simples redigir um texto para que seja lido em voz alta numa situação comunicativa tão importante, pois, apesar de o discurso de formatura ser um gênero textual altamente monitorado, e apesar de a escrita ser muito diferente da fala por, entre várias razões, permitir um grau muito mais elevado de premeditação, nem sempre sabemos quando as palavras vão nos trair.  Escolher o que dizer faz com que se escolha o que não será dito, porque toda seleção pressupõe uma exclusão, de modo que, quando dizemos A, deixamos de dizer B.  Decidimos declarar que esta cerimônia é como o pouso de Pégaso, feito após um longo voo, durante o qual batemos as asas com todas as forças.
Finalmente chegamos aqui: meta alcançada, dever cumprido. Agradecemos a todos e todas: às professoras doutoras, aos professores doutores, às mestras, aos mestres, aos tutores, às tutoras, às funcionárias e aos funcionários de apoio e familiares, pessoas que tornaram possível nossa caminhada.  A essas pessoas nos dirigimos agora para dizer: muito, muito obrigados.
Que este momento fique marcado na memória dos que vieram.  Para isso, levantaremos três temas centrais: 1º: a qualidade dos ensinos fundamental, médio e superior; 2º: a democratização do ensino superior, para a qual contribuíram os cursos da modalidade EAD; e 3º: a superação, que inevitavelmente se mistura com o segundo assunto.
No Brasil, um país de treze milhões de analfabetos, quando se fala em qualidade de ensino, ninguém questiona a superioridade das universidades públicas, que, como sabemos, não cobram mensalidades.  A elevação da qualidade da educação básica da rede pública depende, e muito, do que acontece no ensino superior, porque é da universidade que saem os professores que podem fazer a diferença na vida dos estudantes espoliados e condenados à pobreza dos bairros onde ficam muitas escolas públicas.  Isso significa que, se os professores universitários, os lentes, querem mais alunos nos campi daqui a, por exemplo, dez anos, não podem esperar que a educação básica forme esses alunos sozinha, porque a melhoria dos ensinos fundamental e médio começa no campus, e não na educação básica.  É aqui que as professoras e os professores devem se munir com duas coisas: habilidades, que exigem treinamento e condicionamento, e conteúdos, que exigem memória e constantes leituras, leituras para as quais infelizmente não há boas bibliotecas nem bibliotecários profissionais nas escolas, quer sejam escolas públicas, quer sejam escolinhas particulares de franquias famosas.  Em outras palavras: é o ensino superior que deve garantir primeiro a qualidade do ensino básico, e não o contrário; e, quando sairmos deste auditório, poderemos começar a fazer isso: poderemos transformar o mundo das escolas públicas do estado do Rio, cujo governo, como diria Camões, caiu no engano ledo e cego.  Acreditando em Paulo Freire, admitimos que mudar é difícil, mas não impossível.
Entramos agora no segundo tema deste discurso: a democratização do ensino superior, democratização para a qual contribuíram os cursos EAD. 
Ninguém há de negar que, em nosso país, ocorre o que uns chamam de democratização e, outros, de massificação do ensino superior.  Apesar de hoje haver mais oportunidades para a classe baixa chegar à universidade pública, cujo ensino ainda é muito melhor que o da particular, alunos assalariados, talvez a maioria dos trabalhadores que ingressam no ensino superior, infelizmente, matriculam-se em instituições que cobram mensalidades.  É triste ver que os que menos podem gastar com a educação formal são os que enchem os bolsos das empresas, cada vez mais bem estabelecidas e difundidas.
É muito dura a realidade do estudante matriculado em universidade privada.  Enfrenta ele duas jornadas de trabalho, porque estudo, assim como a venda de um serviço por remuneração, é trabalho; e mesmo que outra pessoa pague as mensalidades por ele, alguém está pagando para que outro alguém trabalhe.  E, no fim, dependendo do curso, o diploma não terá o peso equivalente ao de um que tenha sido concedido por uma universidade pública.
Muitos e muitas de nós tiveram de vender a força de trabalho em atividades não necessariamente ligadas ao curso de Letras, embora outros tenham conseguido atuar voluntariamente em sala de aula graças ao tempo que o curso EAD proporcionou.  O curso a distância permitiu que passássemos menos tempo no campus ou no polo e mais tempo em outras atividades.  Por isso o ensino a distância deve ser defendido, ainda que as circunstâncias que permitiram a ascensão dele sejam do interesse do capitalismo, que obriga o universitário brasileiro a se preocupar com o lado material da vida, o que não permite que ele tenha aquele que deveria ser o seu único trabalho: o de estudar.  Contudo, o EAD e o Cederj podem e devem ser defendidos, principalmente em tempos de cortes de verbas.  E não dizemos isso só porque o mercado de trabalho e o serviço público são carentes de professores, mas também pelo fato de nosso curso ser de altíssima qualidade, graças às suas características únicas, das quais falaremos mais adiante.  Pode ser que um dia a nossa modalidade de ensino, prevista pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação em nome da universalização do ensino, seja facultativa e escolhida unicamente por suas enormes vantagens, e não pela necessidade de conciliar as vidas acadêmica e profissional, das quais a última ainda é imperativa.  Sem o curso EAD, e sem o suporte da UFF e do Cederj, não estaríamos nos formando.  No caso específico de algumas mulheres, devemos ressaltar a tripla jornada de trabalho, porque temos formandas que se tornaram mães durante a graduação e não abandonaram os estudos.
No fim, conseguimos enfrentar duas, ou, como ficou dito, três jornadas de trabalho.  Isso seria quase ou totalmente inviável num curso presencial.  Daí a valorização do EAD: ele é mais flexível.  E, apesar de não podermos viver no campus com o lado material e financeiro da vida garantido com excelentes bolsas, coisas que são ideais justamente por existirem só na ideia, pelo menos NÃO pagamos para trabalhar.  Com a inevitável repetição, vejamos o seguinte raciocínio:
premissa maior: estudo é trabalho;
premissa menor: o universitário de instituição particular paga para estudar;
logo (e esta é a única conclusão possível), ele paga para trabalhar.
Curiosamente, o sentido que damos à palavra estudo é apagado por outros, e esses outros são mais evidentes por estarem de acordo com a ideologia dominante.  No entanto, estudando Análise do Discurso de linha francesa, aprendemos que o sentido sempre pode ser outro, e que portanto podemos resistir a falsas verdades.  Assim, o sentido etimológico da palavra escola, que é lugar de ócio, só é único quando nos limitamos a entender que a instituição de ensino é espaço exclusivo dos que não têm de fazer o trabalho mais pesado, destinado sempre aos que estão na base da pirâmide social, como na Grécia antiga.  Se aceitarmos isso como verdade inquestionável e naturalizada, os campi não serão faculdades nem facultativos: serão um privilégio para os que têm ócio, ou seja: para os que têm tempo livre por falta de trabalho, como se estudo não fosse trabalho, quando na verdade é, ainda que o senso comum não torne isso evidente. 
Não podemos dizer que os colegas do curso presencial não lidaram com privações só porque supostamente tiveram como únicos trabalhos as obrigações acadêmicas.  Afinal, a vida não é fácil para ninguém, e nós somos a prova inegável disso — nós, que nos superamos para chegar onde estamos.  A superação, porém, só foi possível porque houve as oportunidades, e justamente por isso estão misturados os dois últimos temas principais de que falamos.
Temos muito que comemorar por dois motivos.  O primeiro, como eu já disse, é que não pagamos mensalidades para estudar, ou seja: não pagamos para trabalhar, e isso, hoje, é revolucionário, porque, não bastasse testemunharmos o crescimento da privatização e da mercantilização do ensino universitário, um veículo de comunicação, usando a função apelativa da linguagem, já se mostrou favorável à extinção da gratuidade do ensino superior.
O segundo motivo para comemoração são as características únicas e as vantagens de nosso curso.  Tudo isso se comprova com o excelente material didático que recebemos de graça (com a exclusão do fato de que no Brasil se pagam muitos impostos, é claro).  Ficou dito que os professores e as professoras devem se munir com habilidades e conteúdos. Pois bem: podemos ler e reler nossas aulas, que o vento não leva.  Talvez isso também aconteça no curso presencial, mas, se isso é verdade, o mérito é do curso EAD, cujas aulas agora podem ser uma referência para a outra modalidade.  Na condição de mestrando, usarei as aulas como fontes de pesquisa.  Foram elaboradas, em sua grande maioria, por professores da UFF.  Sendo assim, o fato de nos formarmos aqui não pode ser o único motivo de comemoração: a própria modalidade de ensino também é: ela permite que o conhecimento não fique preso dentro das paredes da sala de aula.  E isso se confirma também quando lembramos que nosso curso preza a formação de bons leitores e bons redatores; e, embora não haja a intenção de formar literatos, há entre nós um escritor muito premiado, que pôde se enriquecer durante o curso.  Se hoje sabemos elaborar planos de aula com pré-requisitos, objetivos gerais, objetivos específicos, atividades e referências bibliográficas; se hoje sabemos que, embora o professor de língua não seja obrigatoriamente um linguista por não ser necessariamente um produtor de conhecimento científico; se hoje sabemos da importância de estar em dia com a ciência por meio da leitura dos textos de divulgação científica, devemos tudo isso às professoras e aos professores que redigiram as aulas do nosso curso, implementado graças aos esforços das professoras Rosane Monnerat, Jussara Abraçado e Maria Lúcia, lideradas pela professora Lívia Reis.  Como pianistas que se desdobram para inserir todas as notas usando todas as teclas, inseriram o máximo de conteúdo em suas aulas. 
Finalmente estamos chegando à conclusão desta mensagem.  Sabemos que ela é um discurso porque, sendo um objeto simbólico constituído de signos linguísticos da nossa língua materna, o sentido que ela contém é um efeito da interação.  Do ponto de vista da linguística textual, contém início, meio e fim; do ponto de vista discursivo, porém, esta mensagem é incompleta.  Quando a leitura em voz alta chegar ao fim, não estará na memória dos ouvintes por inteiro, e por isso haverá deslizamentos ou desvios de sentido, o que é normal.  Quero lembrar, no entanto, que, no início, foi dito que, quando dizemos A, deixamos de dizer B.  Escolhemos o que dizer, e escolhemos o que não diríamos.  Hoje, seria muito infeliz o uso da frase Ao vencedor as batatas, que, no romance Quincas Borba, de Machado de Assis, resume algo abominável: a sobrevivência do mais forte, um fantasma do século XIX que permeia e assombra o século XXI.  Sozinho, sou mesmo fraco, mas, com a ajuda de meus amigos e minhas amigas, aos quais sou muito grato, pude vir a este auditório na condição em que muitos eles se encontram: a de formando.
Para a totalidade dos formandos e das formandas, significa muito a conclusão de um curso numa universidade pública, muito mesmo. É particularmente significativo para os que, como eu, são de origem humilde.  Sei bem que, se tivesse nascido em outra época, eu não estaria aqui.  Talvez tivesse um destino semelhante ao de meu avô materno, que não pôde concluir o ensino fundamental, e, para sustentar a mulher, cinco filhas e um filho, passou boa parte da vida enfrentando duas jornadas de trabalho: a de ferroviário e a de vendedor de picolé.  Talvez eu tivesse sorte idêntica à de minha avó paterna, que era analfabeta.  Lavava roupas para garantir renda, e a partir de um certo tempo não pôde contar com o marido, que a abandonara sem se preocupar com a filha e o filho que ainda dependiam dos pais, os mais novos de um total de oito filhos.
Por fim, peço que divulguemos o nosso curso e a forma de ingresso aos que não conhecem nem uma coisa nem a outra.  Essa é uma forma de mudar o status quo para melhor.  É pela vontade de transformar a sociedade que devemos utilizar os conhecimentos e as habilidades que construímos nestes quatro anos e meio, e não só pela nossa própria ascensão social, porque lá fora existem pessoas tão inteligentes e talentosas quanto nós ou até mais, à espera de uma oportunidade idêntica a esta, que nós agarramos.  É nossa responsabilidade criar possibilidades de ascensão social e educação para elas.
Muito obrigado.
                              
Márcio Alessandro de Oliveira.  Teresópolis, 29/9/2016.  (Últimas alterações feitas em 3/10/2016, data da formatura, realizada em Niterói, no Auditório Macunaíma, Bloco B, campus Gragoatá.)