domingo, 8 de março de 2015

CRÔNICAS DE FÉRIAS

CRÔNICA I: DIÁLOGO ANÍMICO NO MEIO DO MATO

       Ontem (17/1/2015), fui a Teresópolis, onde jogaria videogame pela manhã num estabelecimento enquanto meu pai trabalharia num mutirão de faxina no terreiro de umbanda no mesmo bairro em que eu ficaria.
       Objetivamente, não havia nada que justificasse de forma absoluta o uso de dinheiro: eu escolheria jogar num Nintendo 64, máquina que tenho em casa.  Talvez a preguiça de tirá-lo da embalagem legitimasse a escolha; por outro lado, deveria haver outros aparelhos no recinto de jogatina, conforme a memória.  Com sorte, encontraria boas inteligências, daquelas que têm o hábito de ler livros e revistas especializadas em jogos (apesar de um tipo de leitura não estar relacionado diretamente com o outro), inteligências com as quais compartilharia conceitos sobre videojogos narrativos, RPG e outros temas; e, com sorte de grau menos elevado, acharia consciências menos favorecidas, às quais eu poderia levar alguma luz no que diz respeito às preferências de quem não tem senso estético muito desenvolvido para escolher bons jogos.
       Não pude fazer nada disso, pois, para a minha surpresa, tive de ir, de carro, a um terreno não muito distante, situado em frente à rodovia que liga a cidade ao município de Nova Friburgo.  O motivo da ida era o fato de meu pai ter decidido roçar o lugar.  Segundo ele, o terreiro comprara a nova propriedade para construir nela um santuário em que os umbandistas locais poderiam fazer ritos.  (Julguei isso como sendo muito bom, porque nunca gostei de ver galinhas mortas com farofa em esquinas, embora até hoje esteja disposto a abrir exceção às que estejam guarnecidas com dinheiro, como as que me foram descritas anos atrás.)
       Depois de pararmos na estrada por causa de um engarrafamento (ou teria sido um congestionamento?), meu pai (o único de nós dois que sabe dirigir) pediu informação a um vendedor de cocada com base numa referência (uma empresa, que mudara de nome, em frente da qual estava o terreno), ouviu que passara do ponto, agradeceu, manobrou para dirigir na mão oposta e estacionou perto da tal empresa, próximo do acostamento.
       Tiraram-se do porta-mala duas ferramentas (o que é lamentável, já que mais tarde eu voltaria para buscar uma terceira): uma enxada e uma foice.  Atravessamos a rodovia e chegamos ao pé da encosta íngreme de um morro dominada pelo mato.  No alto, uma placa anunciava a venda do lugar e informava números de telefone.  (Certamente esqueceram que devia ser removida.)  Havia ali degraus quase desaparecidos, feitos no barro, suponho, com golpes de enxada.  Era o início de uma trilha que, com algumas erupções no chão e bastante mato, serpenteava pelo morro em duas ou três partes, das quais a última dava acesso a um chão plano, sobre o qual estavam uma caixa de isopor e uma garrafa com substância líquida cor-de-rosa.  Atrás dele o terreno era inclinado, e à esquerda também.  Tive medo dos sacis e das cucas (leia-se: tive medo de serpentes peçonhentas e de picadas de insetos irritantes, como formigas vermelhas).  Mas, se eu ficasse atento, e percebesse a presença de um deles, poderia evitar o pior. 
       Meu pai e eu fomos ao encontro de um homem que lá estava usando um cortador (que consumia o líquido cor-de-rosa).  Ficou estabelecido que meu pai usaria foice, o outro, o cortador; e eu, para meu desgosto, juntaria uns galhos.  Essa tarefa, muito simples, não durou muito tempo, de modo que tive de me ocupar com outra, a saber: juntar o mato cortado e amarelado com a enxada, que eu nunca manuseei bem.  Mas alguma coisa eu tinha de fazer; além disso, mais importante do que trabalhar é fazer com que as pessoas pensem que estamos trabalhando.  As aparências é* o que conta.  (Esta é a conduta real, e não a idealizada.)
       Vi que nem a mim eu enganava.  Era um trabalho inútil.  Em pouco tempo eu ficaria apenas levando e trazendo a água da caixa de isopor, aquela a que me referi no quinto parágrafo.  Ninguém poderia dizer que não fiz nada.  Não que eu me importasse muito com isso.  Não tinha nem tenho compromisso com as intenções religiosas de ninguém (em verdade, pretendo empreender uma luta contra o fundamentalismo).  Mas é muito ruim ficar parado enquanto outras pessoas trabalham.
       Percebi que sou privilegiado por viver numa época em que o ensino é massificado e as camisas de vênus são vendidas.  Meus antepassados (pelo menos os do lado paterno) eram analfabetos e viviam na roça.  Fico contente por saber que o meu destino não é igual ao deles.  Não duraria um dia fazendo trabalho braçal em terras onde conviveria com vários irmãos e irmãs.  Detesto-o.  Quem isto lê pode pensar que aprendi a ter gratidão e que é muito bom perceber a própria sorte.  Gratidão eu não sinto.  Quanto à sorte, que não é uma força mística, mas sim um conjunto de circunstâncias, eu a vi de outra forma, como eu já disse no primeiro período deste parágrafo.  Só que perceber o privilégio que se tem à custa de comparação à sorte alheia (no caso, a de pessoas que nasceram e morreram antes de eu nascer) é o cúmulo da mesquinharia e da miséria.  Não há virtude quando alguém se sente melhor vendo que há pessoas com pior sorte.  Para entender isso melhor, recomendo a leitura de Veronika decide morrer, de Paulo Coelho, tão apedrejado por não dominar o dioma tão bem quanto outros escritores (embora a pontuação dele seja muito melhor do que a de José Saramago, por exemplo) e por ser esotérico.   
       Depois de servir água, fiquei sentado num degrau de pedra descoberto pela foice na parte mais alta da trilha (ou seja, o seu final, para quem chega, e o seu início, para quem sai).  A ferramenta também revelara outros degraus e um patamar.  (Saberíamos depois que o patamar, que ficava no chão plano, estava situado na área em que existira uma casa, demolida, a meu ver justamente, por ordem da prefeitura.)
       Se o mato e a pedra falassem, diriam:
       — Que fazes aí sobre nós?
       — Ocupo espaço (responderia).  Talvez o desperdice.
       — Vocês vêm para cortar-me (diria o mato).
       — E também para me lascar (acrescentaria a pedra).
     — Não se preocupem.  Faz parte da seleção da vida.  Apesar de alguns de vocês serem danificados ou destruídos, os outros dos seus reinos, o vegetal e o mineral, continuarão a existir.  Assim, a destruição de algumas unidades não compromete os conjuntos, que, no seu caso, são os dois reinos.  Da mesma forma, o extermínio de um psicopata não compromete a perpetuação da espécie humana.  É como se a natureza, ao permitir que eliminemos vocês, pedra e mato, cortasse as unhas numa ação higiênica.  No caso específico do mato, é excelente a comparação, porque sempre torna a crescer.
       — Esse pensamento é muito duro e concreto (diria a pedra).
       — Eu sei.  Mas não é meu.
       — Seu ou não, não me agrada (diria a pedra). Afinal, vieram para quê?
       — Para fazer deste lugar um santuário onde serão depositadas galinhas mortas com farofa.  Mas isso não é ruim.  Ruim é aturar a classe média.
       — Que é classe média?  (perguntariam o mato e a pedra em uníssono).
       — É um monstro de orelhas de burro e cérebro de macaco  que, por se afastar dos mais pobres, fala mal do benefício conhecido como Bolsa Família.  Vai ela ao local de culto de sua religião, que diz que é preciso amar o próximo, e deseja o fim dos males que ela tanto pratica.
       Não sei quanto tempo duraria a conversa em termos psicológicos.  Mas, matematicamente, não seria nem muito curta nem muito longa.  Depois que meu pai limpou duas partes da trilha, chegou a hora de irmos (hora essa que chegou depois de duas eternidades).
       Na saída, diriam o mato e a pedra:
       — Obrigados por não nos banhar de ureia.
       — É que não me deu vontade (declararia em resposta).
       E assim passei a manhã.

       *  O verbo, neste caso, concorda com o predicativo, que é o vocábulo "o", classificado como pronome demonstrativo que pode dar lugar ao sinônimo "aquilo".  
(Duque de Caxias, em 18/1/2015, no Facebook.)

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