sábado, 31 de dezembro de 2011

Teresópolis, 2011.

Crônica

OS MARIMBONDOS
Por
Márcio Alessandro de Oliveira

     Insetos e vermes em geral são caçados e exterminados (ainda que se salvem as minhocas e as borboletas).  De todos eles, os marimbondos são os que tenho em pior conta.  Detesto-os.  Nunca conheci ninguém que gostasse deles.  Não são como as abelhas, nem como as formigas, que, apesar de serem mortas ou simplesmente espantadas, não fazem mal quando não atacadas (e ainda produzem coisas muito boas, como é o caso das abelhas, que fazem o mel com que nos empanturramos).
     Há muitos bichos de que não gostamos.  Como exemplos, temos ratos, moscas e baratas, esses seres imundos transmissores de doenças.  O tipo de fama que têm é o extremo oposto da que têm baleias e golfinhos — cuja carne nós, ocidentais, não nos atrevemos a comer (embora bois e galinhas sejam abatidos e tenham a carne preparada de todas as formas) — e micos-leões-dourados (estes, sim, devem ter algo muito especial, já que é gasto tanto dinheiro para que não tenham o mesmo fim que os dinossauros).
     Gosto de muitos bichos.  Mas dos marimbondos não: estarão sempre em minha lista negra.  Contarei por quê.
     Quando eu contava sete anos (em 1997), havia em casa de minha avó paterna um casulo de marimbondos no galho de uma árvore muito próxima de um muro, que delimitava um dos terrenos vizinhos, onde residia uma menininha com quem eu brincava. Sob o galho, passavam os vizinhos dos fundos.  Eu não teria dado atenção ao covil de insetos, se não fosse por causa da menina.  Na ocasião, estava me bisbilhotando; então ela se sentou no muro, cumprimentou-me e apontou para o casulo.
     — Sabe o que é aquilo? (perguntou-me).
     Balancei a cabeça em negação.
     — É um casulo de marimbondos.  Você já viu um marimbondo antes?
     Balançando a cabeça, neguei pela segunda vez.
     — Bem (continuou ela), eles são perigosos: picam até quando não são atacados.    Não se deve chegar perto deles.
     — Então deveriam tirar o casulo dali (disse-lhe).
     –– Seria perigoso!
     Com o rosto iluminado, subitamente desceu do muro, e, em menos de cinco segundos, voltou a sentar-se nele segurando uma pedra.
     — Tem coragem de atirar esta pedra no casulo?
     — Não seria maldade?
     –– Aqueles insetos não fazem bem a ninguém (argumentou ela).  Você faria um favor a todos nós se acertasse esta pedra no casulo.
     — E se eles me picarem?
     — Você só será picado se for tolo: basta correr para não levar uma ferroada.
     Até aqui pensará o leitor que tomei a decisão correta; que recusei a proposta de minha amiguinha de infância.  Revelo que não.  Apesar de nunca ter sido um menino mal — pelo menos não um que desse pontapés nos cachorros da rua ou que puxasse e rodasse os gatos da vizinhança pelo rabo — aceitei a pedra de minha antiga vizinha (talvez com medo de que me julgasse medroso se eu recusasse), e a atirei.
     Quando o alvo foi atingido, ele caiu.  Do casulo, saíram vários marimbondos.  Abobalhado, não corri como fora sugerido: fiquei olhando um dos meus antagonistas voar até mim e picar-me a testa.
     Dizem que, de graça, aceita-se até injeção nessa parte da cabeça, mas eu teria dado qualquer moeda para não levar aquela picada de marimbondo: doeu muito mais do que qualquer injeção.
     Como vemos, quem estava errado era eu, e isto talvez faça com que seja possível concluir que eu não deveria ter raiva de marimbondos.  Acontece que, quando vejo um, ele está voando ameaçadoramente ou picando uma pobre vítima. Mas não pense mal de mim, leitor: sei que fui covarde ao atirar a pedra.
     "Ora, você mexeu com a Mãe Natureza”, dirá o leitor precipitado, “e ela revidou.  É a terceira lei de Newton!"  Mas eu discordo.  Primeiro: não acho que fui picado por causa da fúria da Mãe Natureza, pois acredito nesta entidade tanto quanto acredito no Capitão Planeta.  Segundo: a terceira lei de Newton vale tão só para a Física: qualquer interpretação que lhe dermos fora dessa área do saber será uma deturpação. (Isto, aliás, já aconteceu com uma frase de Maquiavel: "Os fins justificam os meios". Esta frase significa que o Estado justifica o povo, e não o contrário; e, por isso mesmo, o primeiro tem o direito de governar o segundo.)  Graças à interpretação errônea da terceira lei de Newton (que já é conhecida, fora do campo da Física, como "lei do retorno") nasceu uma superstição dos tempos atuais.
     Mas suponhamos que a Mãe Natureza exista e tenha tido realmente um papel determinado por uma "lei".  Quem a teria provocado?  Os marimbondos ou eu?  Eu fazia (e ainda faço) parte da natureza tanto quanto os marimbondos, e eles fizeram um casulo num lugar que, a meu ver, era impróprio.  Eles e eu éramos parte de um mesmo sistema ecológico — sistema esse do qual ainda faço parte: a água quente, o macarrão instantâneo, o ônibus em que entro não me excluem da natureza, assim como também o asfalto e a fumaça dos carros não excluem os centros urbanos: a "selva de pedra" não está tão distante da fauna e da flora, só que não vemos isso.
     A verdade é esta: acontecem terremotos, erupções e maremotos; chuvas torrenciais alagam cidades, caem trombas d’água; e meninos jogam pedras em casulos de marimbondos; e, se tiverem bom caráter, aprendem a não subjugar arbitrariamente os mais fracos.  O marimbondo que me picou, aliás, poderia muito bem não ter feito nada, assim como eu poderia nunca ter atirado aquela pedra; portanto, não se trata de nenhuma lei de Newton, e sim de estatística (que é uma coisa que adoramos usar para respaldar opiniões e informações), de probabilidade.  Mas enxerguemos outra coisa óbvia: Todos os fenômenos naturais já ocorriam antes da primeira Revolução Industrial.
     Ora, se terremotos, erupções, maremotos, chuvas torrenciais e trombas d’água já ocorriam muito antes da primeira Revolução Industrial, por que dizemos tanto que a Terra está mudando por causa do aquecimento global?  Por vaidade: a reputação de antagonistas da natureza que temos é mais uma conseqüência do nosso senso de superioridade.  Já atribuímos a nós mesmos as piores características; é até natural que nos culpemos tanto, uma vez que nos achamos vis.  Não foram poucas as vezes em que ouvi alguém dizer:
     — O pior ser que existe é o ser humano.
     Quando alguém fala isso, está falando mal de si mesmo. 
     "Falemos mal, mas falemos de nós."  Será isso?  Será que, de alguma forma, essa ideia enche nosso ego?  Sabemos que uma casa pode ser desmantelada pela natureza, assim como um casulo de marimbondos.  Obviamente, ninguém constrói nada esperando um desastre, nem tampouco espera morrer por causa de um.  Da mesma forma, marimbondos não fazem casulos para que depois alguém os destrua a pedradas.  Será mesmo que podemos ser responsáveis por catástrofes sem o uso de armas de destruição de massa?
     Outro fator para crermos que somos culpados por desastres naturais são a Ciência e os jornais.  Os dois fazem promessas de danação eterna (para usar a expressão do dublador Nelson Machado), e vaticinam que o nível dos oceanos irá subir, como se o Apocalipse estivesse a caminho. "Ela [a Ciência] promete dor, morte, calor, inundações." (Nelson Machado, ELA!, Mudando de Assunto (página de Internet).)       "De todas as formas de fé religiosa, a fé n’Ela, A Ciência Moderna, é a mais inexplicável." (Nelson Machado, idem, ibidem.)
     Talvez nem mesmo os marimbondos sejam tão maus como penso.  De qualquer modo, nunca gostarei deles.  É certo, porém, afirmar o seguinte: eles não podem saber onde é ou não é seguro construir moradia, mas nós podemos.

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