sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A TARIFA DE ÔNIBUS
(Crônica.)
       É este um tema repetido em toda a Baixada Fluminense.  O que mais fazemos — nós, caxienses — é ir ao trabalho de ônibus, de modo que, com exceção da notícia (que não deve nem pode conter opinião, pois aí deixaria de ser apenas notícia), todo escrito que se propuser a falar do assunto não terá outro destino senão o de ser um desabafo, que, em tese, de nada adiantará para alterar o quadro revoltante do transporte público do município.  E se vamos ao trabalho de ônibus, é impossível, para mim, cronista de quinta classe, alimentar o desejo de contar novidades.  Ora, só há notícia sobre o preço da passagem de ônibus porque as pessoas querem saber o valor; mas ter novidades — isso não querem, porque já estão fartas de saber que o preço mais sobe do que desce.  O único diferencial, portanto, é o valor, que, quer seja divulgado nos jornais, quer não, terá de ser pago.
       Os jornalistas (que criticam a todos, e não admitem que ninguém os critique *) não devem achar que seja tão meritório escrever uma notícia sobre tarifa de ônibus: só o fazem porque precisam de preencher o espaço das gazetas e dos telejornais.  É só por isso que o aumento da tarifa merece publicação.  (“Os americanos (...) dizem que, quando um cão morde uma pessoa, não temos uma boa notícia, pois esse fato é corriqueiro; agora: quando uma pessoa morde um cão — aí, sim: temos notícia, da boa.”  (Diógenes Magalhães, Redação com base na linguística (e não na gramática), pág. 179.))
       Tentemos, contudo, conversar sobre a tarifa.
       Quem mora no terceiro distrito, como eu, pergunta-se:
       — Que devo fazer? Esperar quatro eternidades na estação de trem (ou de comboio, para o leitor que vivia em Portugal) e pagar um preço injusto, ou esperar duas eras pelo ônibus e pagar ainda mais alto preço?
       Existe um conjunto de circunstâncias muito engenhoso para que as empresas de ônibus tenham os negócios funcionando muito bem.  Entre elas estão a urina acumulada por semanas nas estações ferroviárias, a demora do trem e o monopólio de itinerários.
       Pouquíssima é a atenção às estações de trem da cidade.  Como se não bastasse a falta de trens, não são limpas: há sempre a necessidade de prender a respiração nelas (e, no caso dos hipocondríacos, a necessidade de fazer assepsia).  (Isso, aqui, em Duque de Caxias.  Magé e Guapimirim, como todos nós sabemos, têm ainda pior sorte.)  Mas a empresa que administra as linhas de trem é que não está para isso.  Estamos a ver: em vez de crescer, limita-se ela a dar conta de uma demanda que prefere superlotar os trens a superlotar os ônibus.  Prefere?  Não, não prefere: a maioria das pessoas que vai a algum lugar de trem não o faz por preferência, e sim por economia (de dinheiro e até de tempo, posto que obviamente não há engarrafamento nas ferrovias).
       Deve ser maravilhoso para cada um dos donos de empresa de ônibus.  Posso vê-los sorrindo sadicamente, enquanto seguram uma taça de champanha, numa piscina que fique nalgum bairro “nobre”.
       Imaginemos uma conversa entre mim e eles:
       Eu: — Não lhes ocorre que talvez estejam prejudicando outros de sua classe?  Não acham que, aumentando o preço da passagem, estarão impedindo que as pessoas passeiem e gastem dinheiro?
       Eles: — Não: são altíssimos os impostos, e o preço da gasolina sobe, e não podemos nos prejudicar.  Além disso, abaixamos, em Imbariê, a passagem aos domingos; assim você e os de sua classe podem ir ao Caxias Shopping para experimentar um pouco da felicidade que o capitalismo oferece.  Achamos que seria um modo de fazer com que se calassem um pouquinho.
       Eu: — E nós?  É justo que sejamos prejudicados, mesmo sendo a maioria?
       Eles: — A vida é assim mesmo.
       Eu: — E o mercado de trabalho?  Como iremos trabalhar, se as empresas não quiserem pagar a passagem que os senhores nos impõem?
       Silêncio.
       Eu: — Respondam!  Estou esperando!
       Eles: — Rapaz: Não temos tempo para discutir com crianças de sua idade: temos de contar os lucros; por isso, vá rodando.
       Eu: — Ah!, sei que têm de contar os lucros; certamente já chegaram à estratosfera!  Alguns dos senhores pagam ao motorista o salário de apenas um funcionário, mesmo que ele tenha de fazer o serviço de cobrador também.  Pouco lhes importa que ele tenha de dirigir e contar o troco ao mesmo tempo; pouco lhes importa que, ao fazer isso, coloque em risco a vida de pedestres e ciclistas, porque nenhum destes é seu filho.
       Eles: — São tempos de crise.
       Eu: — Crise?  Os senhores estão lucrando!  Acabaram de dizer isso!
       Eles: — E o que sabe você de economia?
       Eu: — O que aprendi na escola, à qual não queriam que eu fosse, posto que muitas vezes me foi negado o direito de entrar no ônibus só porque eu estudava em escola pública.
       Eles: — É lógico: você não pagava a passagem.
       Eu: — Quanto cinismo!  E não me negavam só o acesso à escola: negavam-me o acesso à biblioteca do meu e de outros distritos também!  Logo o acesso à biblioteca, onde posso ler, que é mais importante que estudar!
       Eles: — Por que você quer ler?  E para quê?  Esqueça essas coisas: você tem de trabalhar como assalariado obediente.  Tire carteira de motorista, e deixe currículo numa empresa de ônibus.
       Eu: — Prefiro passar fome.
       Eles: — Indolente!  Você tem de produzir!  E o nosso bem-estar?  É o trabalho que o garante!
       Seria impossível continuar.  Eles só chegam a um consenso entre si para que um não tire o monopólio de itinerário do outro (como ficará dito mais adiante).
       Aí está: aos empresários interessam tão só as queixas que fazem uns aos outros; e fica tudo muito bem.  Muito bem, vírgula, porque quanto mais passa o tempo, pior torna-se o serviço dos rodoviários, os quais, por não poderem se rebelar contra a exploração a que são submetidos, descarregam a raiva nos passageiros, que tentam processar as empresas.  Basta ver o péssimo serviço de alguns, que certamente é fruto da infelicidade.  Tomemos como exemplo um fiscal (veja bem: um fiscal, e não o fiscal).
       Havia pouco tempo (pouco mais de um mês), na Washington Luiz (BR 40), entrava um sujeito no ônibus para fiscalizar.  O desgraçado punha-se a fazer o trabalho com tanta minúcia, que demorava mais de cinco minutos (!).  Logo os passageiros passaram a queixar-se: começaram a manifestar pensamentos que só com muito autocontrole poderiam ficar ocultos, embora nenhum deles tivesse caído no palavrão.  Entretanto, o nosso herói lançava olhares severos aos lugares de onde vinham reclamações, como se com isso pudesse intimidar alguém: era irredutível; tanto que até retrucou quando alguém “atreveu”-se a censurá-lo ainda mais claramente.  A gota d’água, todavia, foi certa noite, quando o referido fiscal começou a contar o número de assentos ocupados num ônibus que estava completamente lotado.
       — Quanta burrice!  (bradou um senhor).  Não vê que todos os assentos estão ocupados!  Se quer contar, procure o número de assentos vazios; depois, faça a subtração!  Ou o senhor não sabe?  Se não, volte para a escolinha!
       Zangado, o fiscal respondeu, mas só o fez por fazer.  No fundo, estava arrasado, pois sabia que errara, sabia que tomara o tempo dos passageiros.  Devia estar amargurado por fazer um trabalho que o forçava a repetir uma operação; e quando teve oportunidade de fazer outra mais simples, não pôde, por causa da força do hábito.
       Depois disso nunca mais vi aquele fiscal — o que me entristece, porque talvez tenha sido demitido; mas também me alegra: é muito bom saber que o ônibus me levará à Avenida Brigadeiro Lima e Silva passando pela Washington Luiz sem longo atraso.
       Mas se eu, habitante do terceiro distrito, quiser ir ao centro do município pelo mesmo caminho, não poderei tomar o ônibus de outra empresa, pois só há uma que faz o trajeto, que é o mais rápido.  Às demais resta a Avenida Presidente Kennedy.  Esse é o monopólio de trajeto, esse é o consenso a que chegaram os empresários.
       Pagamos um preço altíssimo, toleramos a petulância dos rodoviários (os estudantes de escola pública mais que qualquer um), e ainda temos de suportar calor (na maioria dos ônibus não existe ar refrigerado) e sujeira.  Naturalmente, se reclamássemos aos empresários, eles diriam:
       — Mentira!  É justo o preço da passagem; nossos funcionários são felizes; e nossos ônibus, refrigerados e limpos.
       E eu acrescentaria:
       — É claro que é justo o preço da passagem, mas só para os senhores, que não vão a lugar nenhum de ônibus!  Os senhores sempre negarão tudo quanto se lhes disser sobre os absurdos que existem no seu empreendimento!  Nenhum dos senhores dirá: “É verdade, você e os outros cidadãos estão certos, e nós, errados: temos de melhorar a qualidade, substituir os micro-ônibus por ônibus grandes, dar emprego aos cobradores, etc.”
       Entro nos ônibus desta cidade todos os dias, porque tenho de ir à universidade.  E é caro fazer isso: meu dinheiro é pouco; e no entanto tenho de gastá-lo pagando uma tarifa de mais de quatro reais uma vez por dia (duas, se eu não for de trem, cuja passagem é de dois reais e oitenta centavos), quatro vezes por semana (não tenho aula às quintas-feiras).  E ainda há as mensalidades.  No Brasil, assim como em outros países, o universitário deve pagar para trabalhar.  Sim, pagar para trabalhar:
       estudo é trabalho (premissa maior);
       tenho de pagar para estudar (premissa menor);
       logo, tenho de pagar para trabalhar (conclusão).
       Apesar de tamanha dificuldade, vou à sala de aula assim mesmo, à noite.  No caminho de volta, depois de descer do ônibus a más horas, com poucas moedas no bolso e calça rasgada, penso nos assaltos a ônibus que poderiam ter acontecido, e que de fato acontecem, porque, assim como a tarifa de ônibus, a segurança pública depende da política, que é cada vez mais cruel para com o povo caxiense.
       Não desconfiam os ignorantes que a tarifa que tanto detestam é resultado da política a que têm aversão.  Em outras palavras, os analfabetos políticos se queixam, mas não sabem que a política é a raiz de tudo na sociedade, que é “um grupo de indivíduos que explora outro grupo de indivíduos”.  (Machado de Assis.)  Não deve ser difícil ouvir de alguém que não saiba o porquê das coisas: “Fulano rouba, mas faz.”  (Tolice maior não poderia haver.)
       Estão chegando as eleições de 2012, mas não há, até onde sei, um movimento político que se oponha seriamente às empresas de ônibus.  Esperemos, pois, que um grupo de candidatos mostre uma proposta que beneficie os que realmente produzem a riqueza do município, e não os que dela se aproveitam.
       Agora, um último desabafo: Hoje, tenho dinheiro de passagem para ir à sala de aula, mas amanhã deverei não ter.  Talvez a solução seja vender fósforos.

       (*) Na crônica Os gatos, do professor Diógenes Magalhães, diz-se: “Os jornais (que falam mal de todos, e não admitem que ninguém fale mal deles), referiram, há poucos dias, a perseguição que está sendo movida aos gatos (...).”
                                                     (Duque de Caxias, 21 de novembro de 2011.)
APÊNDICE
       Algum tempo depois de esta crônica ter sido publicada no Caxias Digital, subiu de novo o preço da passagem de ônibus em Duque de Caxias.  No terceiro distrito, paga-se um absurdo quando se vai ao centro do município.
       Dias atrás o preço da passagem das barcas também aumentou, e para impedir que manifestantes quebrassem o patrimônio da empresa responsável por elas, a polícia ficou de prontidão perto das roletas.  A diferença é que lá o Ministério Público está investigando o aumento, enquanto aqui... Tudo continua a mesma coisa, embora tenha sido feito um abaixo-assinado.
       Naturalmente, resta aos empresários a desculpa de que cartões iguais ao Bilhete Único são a solução.  Isso é mentira.  Com efeito: o dinheiro público — o nosso dinheiro — é usado para pagar aos empresários o restante do valor que não se paga com o Bilhete Único — como bem observou um passageiro das barcas ao ser entrevistado pelo RJ TV.  Então, se com um cartão alguém pagar menos de quatro reais por uma passagem de quatro reais e noventa centavos, o restante do valor o governo pagará com o dinheiro dos impostos.  É falso, portanto, o raciocínio segundo o qual o passageiro paga menos com o Bilhete Único, cujos créditos também custam muito, mesmo que com ele a tarifa fique mais "baixa" do que quando esta é paga com cédulas ou moedas.
***
       É absurda a expressão Caxias Shopping.  Se shopping (de shopping center) não fosse um termo estrangeiro, ele poderia ser usado, desde que fosse abandonada a sintaxe inglesa; assim: Shopping de Caxias.  Comparem: Biscoitos da Nestlé, ou: Biscoitos Nestlé (e não Nestlé biscoitos).  Como, porém, shopping é um termo estrangeiro, deveria ser substituído por Centro de lazer (em alguns casos, o termo deveria ser substituído por centro de compras, ou por algum neologismo que não seja um circunlóquio); logo, Caxias Shopping deveria ser conhecido como Centro de lazer de Duque de Caxias.
       Pensam alguns linguistas que isso é bobagem, que shopping, um anglicismo, foi aceito porque a língua "evolui".  Estão iludidos: Shopping é uma palavra perfeitamente substituível, como qualquer outra: só foi aceita porque a ditadura linguística dos ignorantes desprovidos de personalidade é a que impera.  Para eles, os semideuses norte-americanos possuem palavras sublimes.  Temos aqui mais uma prova — entre várias — do complexo de inferioridade dos brasileiros, que é tão grande, que se pode dizer que são macacos de imitação dos super-homens do norte.
       (Quem se detiver para ler Redação com base na Linguística (e não na Gramática) e Língua, Linguagem, Linguística..., do professor Diógenes Magalhães, entenderá o que estou dizendo.  Aquele competentíssimo linguista realmente sabe usar o bom senso; e conhece muito bem a Língua Portuguesa.)
       Contudo, não me restou escolha: tive de usar, ainda que a contragosto, o nome Caxias Shopping.


(Duque de Caxias, 11 de novembro de 2012.)

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