quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A MÚSICA QUE VEM LÁ DE FORA (OU: PROBLEMAS EM CANTAR EM JAPONÊS)

       Alguns (ou muitos) de nós têm o hábito de cantarolar as canções favoritas.  Não importa que os cantores improvisados tenham péssima voz até mesmo para algo que não exige afinação: dominados pela melodia, encaixam nela a letra.  É isso o que acontece comigo — e talvez as pessoas estranhem.  Não que a minha voz seja horrivelmente esquisita (bonita sei que não é).  Acontece que eu canto em japonês.
       O Brasil, uma mistura de culturas e raças, é, todos sabem, o país com o maior número de imigrantes japoneses.  Ao cantar músicas da terra do sol nascente, não deveria um brasileiro correr o risco de receber críticas segundo as quais não se devem cantar músicas cuja letra não se entende.  Pelo visto, isso só é permitido quando se trata de músicas norte-americanas.  Afinal, gostamos de tudo que vem da terra do tio Sam; adoramos macaquear os super-homens dos Estados Unidos.  (Contudo, saber, como não saber, o significado de uma letra estrangeira é um direito, e não uma obrigação.)
       A meu ver, é belíssima a língua japonesa; talvez seja uma das mais belas línguas (não posso afirmar que é o mais belo idioma, pois não conheço todas as línguas do mundo).  Mas, convenhamos: cantar em japonês pode ser engraçado.  Para os brasileiros, certas palavras do idioma nipônico formam legítimas cacofonias (uniões de palavras que formam outras de sentido desagradável ou ridículo).  Vejamos.
       Estou eu pedalando numa rua ladeada por casas (não há ciclovias no município em que moro).  Começo a cantar alto, pois, aparentemente, a rua está deserta, e não me ocorre que os moradores possam se incomodar:
       Omoide wa itsumo kirei dakedo [Bonitas são as lembranças (é o que dizem certas traduções)].
       Aparece um pedestre, que escuta o verso seguinte:
       Sore dake ja ona KA GA SÚKU wa [Mas elas por si sós não satisfazem].
       Se continua a ouvir, escuta, na segunda metade da letra (a canção é Sobakasu (Sardas, segundo as traduções que li)):
       (...) Sore ga atashi no seikaKU DAKARA [É esta a minha personalidade].
       Se, num exercício de abstração, “esquecermos” o nosso idioma por alguns momentos, poderemos achar bonitas as cacofonias, que, nesse caso, deixarão de ser o que são.
       Quem quer trocadilhos obscenos não tem de escutar canções japonesas.  Em verdade, não precisa nem de unir duas palavras para formar uma terceira hilária ou indesejável.  Basta conjugar o verbo computar: comPUTO, comPUTAS, comPUTA, computamos, computais, computam.  Trata-se, aqui, de um verbo defectivo (defeituoso), que não deve ser flexionado nas três pessoas do singular no presente do indicativo.  (Segundo o professor Sérgio Nogueira, o verbo adequar também é defectivo; mas não creio que suas formas finitas do presente do indicativo sejam tão cacofônicas quanto as três do verbo computar).
       O problema da cacofonia é maior quando ela se dá com a união de palavras.  Evitar um verbo defectivo não é muito difícil; todavia, não acho que se possa dizer o mesmo quando temos de evitar o surgimento de um termo com o qual se faça trocadilho.  Se alguém diz: "Vou soCAR ALHO", ou: “Vou-ME JÁ, ou ainda: “Não gosto da polítiCA GOvernamental”, não tem intenção de fazer grosseria...  Quando alguém lê em voz alta um texto cheio de cacofonias, esse alguém pode passar por um constrangimento.  O ideal é que se evitem vocábulos cacofônicos e eventuais junções cacofônicas (lembremo-nos de Machado de Assis: “Há coisas que se não dizem.”), a menos que tenhamos a intenção de fazer humor.
       Isso tudo deixa bem claro que não é justo discriminar a língua japonesa: cacofonias não são exclusividades suas.  Resta, naturalmente, a questão de lidar com o que é diferente.
       Ouvir canções japonesas não rende mais surpresa alheia do que cantá-las, e embora as duas ações não sejam necessariamente crimes de lesa-pátria, há quem ache um despropósito escutar alguém cantar em japonês.  Já li, no You Tube, comentários enfezados sobre uma apresentação da cantora Melissa Kuniyoshi, que, no programa de Raul Gil, interpretou composições japonesas.  Ainda que não se possa negar o talento da menina, cuja voz é muito bonita, houve quem se queixasse do repertório, como quem diz: “Por que uma menina está cantando em japonês no Brasil?  Não é uma atitude nacional nem nacionalista!”  Ora, ouvir o que é estrangeiro não torna o Brasil menos brasileiro, e ter aversão sistemática a tudo quanto vem de fora não ajuda a combater a desnacionalização do nosso país.  Nem tanto ao mar.  É preciso ter equilíbrio, coisa que o nosso povo não alcança.  Quem não gostou do fato de Melissa Kuniyoshi escolher músicas do Japão dificilmente teria se incomodado se ela tivesse cantado uma música da Lady Gaga. 
       — Mas a maioria do público (dirão alguns observadores afobados) não tem ascendência japonesa. 
       — Que raciocínio! (responderei).  Então é preciso ter ascendência chinesa para gostar de macarrão, norte-americana para gostar de hambúrguer e italiana para saborear uma pizza?
       A despeito das cacofonias, o japonês, como outros idiomas, é uma língua eufônica (agradável aos ouvidos): suas colisões, suas aliterações, seus ditongos, seus hiatos e suas ordens vocálica e silábica causam um efeito estético que pode perfeitamente ser apreciado.  Mas, suponhamos que cantar em japonês fosse crime aos olhos da Lei.  Não haveria problemas: eu poderia substituir as letras escritas em japonês por outras escritas em português, e essa ideia já ponho em prática; para isso, faço adaptações.  Algumas traduções (amadoras) de Sobakasu, música de abertura de Samurai X, foram a base para Sardas e Espinhos.  Ninguém se interessa pela letra quando a escuta; ninguém me pergunta: “Que música é essa?”.  Que se pode esperar?  Muitos brasileiros só querem ouvir Justin Bieber.  E são esses brasileiros que mais precisam de adaptações.  Como 95% deles não têm nem um pouco de intimidade com o inglês, já se imaginam as distorções nas letras e os erros de articulação de vocábulos durante as cantorias sob o chuveiro.  É mais cômodo cantar em português.  Entretanto, jamais fariam adaptações, mesmo se tivessem acesso a boas traduções: seriam contra elas: a pobreza de imaginação e o complexo de inferioridade nunca permitiriam que fugissem da subserviência aos estadunidenses.  (Azar o deles.)
       (É perfeitamente viável adaptar canções estrangeiras, ainda que isso seja mais difícil do que parodiá-las com fins satíricos.  Rodrigo Rossi, responsável por Laços de Flor, cantados por Melissa Matos, mostrou-se competentíssimo adaptador.  Foi fiel à ideia e ao contexto de Hana no Kusari, mas não foi subserviente à letra japonesa (nem poderia ser).  Soube descrever a tristeza e a saudade de uma pessoa cujos laços de amizade estão desgastados, enquanto ela está distante da pessoa amiga sem deixar de sentir saudades do passado; daí se deduz que haja algum motivo para a distância, talvez uma mágoa ou uma circunstância que gere um fatalismo, uma conformação, mas não uma conformação absoluta: a “personagem” da letra acredita que “mesmo um deus não vai separá-los”, até porque, em sonhos, tenta “modificar um destino tão sombrio”.  É esse estado de coisas (e de espírito) que se descreve tanto na letra japonesa como na adaptação brasileira (pelo menos é isso o que penso).  Naturalmente, ideias secundárias e certas figuras de linguagem foram substituídas por outras, de modo que fosse desenvolvido o tema da letra.  É um misto de transcriação e criação pura.  Se levarmos em conta a tese da tradutora Lia Wyler, autora de Línguas, poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil, a letra de Rossi também será original, pois a composição dele não existiria se não a tivesse feito, isto é: se não a tivesse criado.  Graças a ele, aos tradutores e à Melissa Matos, os fãs d’Os Cavaleiros do Zodíaco ganharam um verdadeiro presente, e o patrimônio cultural do país ganhou um novo componente.)
       São nostálgicas as músicas de abertura e de encerramento de desenhos japoneses; e foram o prelúdio para a entrada marginal da música japonesa e até da música de outros países orientais.  Digo marginal porque, com exceção de PSY e Puffy AmiYumi, não houve divulgação nem concertos, a menos que levemos em conta os eventos de desenhos japoneses feitos para grupos numerosos, porém seletos, de fãs ocidentais.
       Quem quer fazer humor com músicas japonesas não precisa esperar que alguém passe de bicicleta.  Basta achar um fã de Dragon Ball Z que esteja cantando a primeira canção de abertura.  A esse fã deve ser dito o seguinte:
       — Chá, lá?!  Então vamos tomar chá!
       O assunto, contudo, é sério.  São necessárias uma educação musical e uma educação linguística.  O Brasil não sabe apreciar o que é seu nem o que é estrangeiro.  Com um povo que não estuda línguas e que não recebe aulas de música nas escolas, fica difícil (ou praticamente impossível) esperar que se aprecie música oriental.  Mas há esperança: Melissa Kuniyoshi foi aplaudida mais de uma vez na televisão.
       Até que isso mude, escutarei manifestações sonoras urbanas com as quais o zé-povinho revela falta de pudor e ignorância.  Apesar desse triste quadro, posso me divertir cantando:
       Minha mãe me falou que eu preciso casar/ Pois eu já fiquei mocinha...
       Isso, sim, é de fazer rir.

                       (Duque de Caxias, de 29 de dezembro de 2012 a 19 de junho de 2013.)

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